12 - Planos e Revelações
A vó de Gina nos ofereceu um pedaço de pão caseiro, e pra não fazermos desfeita, fomos comer. Na mesa eu disse:
-Olha, precisaremos do Eduardo. Senão não vai adiantar de nada.
Gina:
-Eu ligo pra ele já.
E foi para a sala. Ficamos eu e Juliane na cozinha. Ela olhou para mim, parecendo que estava a me analisar. E disse:
-David. Você não está com medo?
Eu pensei. E disse:
-Estou. Mas se não fizermos isso, não vai parar nunca.
-David, e se eles roubarem nossos corpos também? Eu não quero ficar no mundo deles. –e começou a chorar.
-Não seja pessimista Ju. Nós vamos salvar o nosso amigo, trazê-lo de volta e no fim vamos resolver esse maldito jogo.
-Sabe, eu nunca, NUNCA mais quero mexer com os mortos.
-E eu preciso te dizer uma coisa. Eu nunca havia feito experiência alguma antes da daquele dia.
-Sério? Você... Mentiu? Por quê?
-Eu não sei bem. Poderia ter dito a verdade. Mas se dissesse a verdade não conseguiria me aproximar de você. Sabe, eu gosto de você desde meus doze anos – falei isto transbordando de vergonha.
Ela se surpreendeu. Pensou por algum tempo e disse:
-Mas por que nunca me disse isso?
-Porque sou tímido. E você nunca me enxergou.
Ela pensativa. E eu complementei:
-Portanto não tenha dúvidas de que vai dar tudo certo. Eu não faria correr risco a garota que eu gosto.
Ela me deu um abraço. Eu não soube medir o valor daquele abraço, não sabia se era de amigo, ou de paixão, ou de medo talvez. O fato é que foi longo. E não era hora para pensar em algo com ela. Não enquanto não resolver o problema.
Gina chegou, esperou um pouco e disse:
-Gente, não quero interromper mais... Falei com Eduardo. Ele me disse que nos espera na frente da casa de Carlos.
Neste momento meu celular toca. Era minha mãe:
-Mãe?
-David! Já são dez horas da noite. Onde quer que você esteja, quero você aqui já.
Gelei. E disse:
-Mas mãe. Eu não posso.
-Não quero saber, você ainda não está inteiramente livre do castigo.
-Mas...
-E se você não vir em meia hora eu vou buscar você, e não queira que eu faça isso. Porque você vai passar vergonha.
Tomei coragem. Desliguei o celular na cara dela. Passar mais uma noite em pesadelos não! Ao desliguei falei para as meninas:
-Vamos. Vamos tentar entrar naquela casa por bem.
13 - Plano em ação
Chegamos na casa de Carlos dez e meia da noite. Batemos palma. A mãe dele atendeu e disse:
-Crianças... O que vocês fazem aqui?
Eu:
-Senhora, seu filho ficou de sair com a gente hoje.
Mãe de Carlos:
-Impossível querido. Ele está de castigo. E já está dormindo.
Juliane:
-E não podemos posar aí com ele pra darmos uma força?
Mãe de Carlos:
-Não. Não tem pra quê.
Gina:
-Ah... Deixa vai!
Mãe de Carlos:
-Não insistam. Seus pais sabem que vocês estão aqui? Vou ligar pra eles.
Eduardo:
-Nãão! Ao menos eu posso ficar? Sou o melhor amigo dele
Mãe de Carlos:
-Não! Por que insistem tanto? E vou ligar agora para seus pais.
E entrou e fechou com força a porta. Não podíamos criticar o ato dela. Fizemos muitas coisas erradas durante estes últimos dias.
Sentamos na frente da casa dele. Eduardo disse:
-E como vamos fazer?
Gina:
-Não podemos ficar aqui. Vou até desligar o celular para minha mãe não ficar ligando. Mas provavelmente vão vir aqui buscar a gente!
Juliane:
-E o pior é que não vamos conseguir fazer o plano. Como vamos chegar até Carlos?
Eu:
-Não vamos desistir gente. Vamos para algum lugar ermo aqui no bairro mesmo. Esperaremos até a hora e voltaremos para cá.
Eduardo:
-Por hora me parece a melhor ideia.
Então andando pelo bairro achamos um terreno baldio, com mato bem alto. Falei:
-Não é um hotel cinco estrelas, mas dá para ficar numa boa por algumas horas.
Juliane:
-Ei... Mas tem... Carrapichos aqui!
Eu ri. Entramos lá e ficamos sentados. Falei para Eduardo:
-Eduardo. Você sabe pular muro?
Ele:
-Vish... Eu não!
Eu:
-Não acredito! Pior que eu também não.
Ficamos em silêncio. Gina foi a primeira a emplacar no sono. O celular de Juliane ficou ligado e a mãe dela a ligou por volta da meia noite. Ela desligou na cara. E desligou definitivamente o celular. Não era o melhor dos exemplos ser grosseiros com as mães, no entanto no momento teríamos que salvar Carlos e nossas noites.
O tempo foi passando. Todos praticamente dormindo. Fiquei com o relógio de Eduardo na mão esperando o momento. Eu não conseguiria dormir, então fiquei a espera. Pensei em como seria. O que eu faria. E de tanto pensar em dúvidas, meus olhos foram cerrando...até que... o cochilo foi inevitável.
14 - Meu terceiro 3:48
Abri os olhos, olhei ao meu redor já me lembrando de onde estava e porquê estava. Olhei ao lado, meus amigos dormindo, e começou levemente um vento. Um vento intenso, mas não forte. E quando olho ao redor do terreno baldio por volta de dez seres encapuzados flutuantes estavam parados parecendo me observar. Me desesperei, acordei meus amigos. Gina gritou e falei:
-Pessoal, vamos voltar para casa do Carlos. Urgente!
Juliane deu a mão para mim e disse:
-Você me protege?
Eu:
-E a bola é redonda?
Ela deu um riso muito discreto, saturado de medo e levantei e puxei ela. Eduardo e Gina estavam na frente.
Dez segundos após começar a corrida até a casa de Carlos, olhei para o céu e gritei Eduardo:
-Eduardo! Olha pro céu!
-O que são essas coisas David?
-Acho que são almas!
-E o que querem?
-Basicamente um corpo!
-Não era o que eu queria ouvir.
E nos apressamos mais ainda. Pois ao céu, havia uma nuvem de criaturas braço-transparecidas descendo em nossa direção. Chegamos até a casa de Carlos. Eduardo tentou abrir o portão e disse:
-Tá trancado!
Eu:
-Eu imaginava. Poxa, temos que ser rápidos! Elas estão se aproximando!
Fiquei por alguns segundos pensando, e meus amigos também. E do nada, reparei na rua uma pessoa se aproximando calmamente de nós. Era Carlos.
Eu disse:
-Carlos?
Carlos:
-Sim. Me ajudem. Vamos entrar.
Gina:
-Mas como? Está trancado!
Carlos:
-Olhem na caixa de correio. Afinal, a casa é minha!
E lá estava a chave de sua casa. Abrimos o portão. Ele me segurou e disse:
-Cuidado! Há uma alma no meu quintal. Vocês podem se machucar. Eu sem corpo não.
E fomos cautelosos. As almas que vinham do alto estavam a chegar, e então a alma que Carlos alertou apareceu: Era um cão, muito grande, com os olhos azuis-reluzente. Foi para cima de Gina, e atacou em cheio. E simultaneamente as almas do céu se aproximaram de nós, e começaram a tentar nos tocar no intuito de nos possuir. Tinham gemidos terríveis.
É incrível como um mísero jogo pode trazer tantos danos à um grupo de jovens idiotas. E seria incrível sairmos daquela situação como num passe de mágica. Naquele momento, passou pela minha cabeça que tudo aquilo foi fruto de uma idiotice minha e que agora, estava irrecuperável. Em câmera lenta na minha mente eu via o animal tentando atacar o rosto de Gina enquanto Eduardo tentava separar já com três criaturas em seu redor, ao meu lado estava Juliane, chorando e puxando meu braço pois já estávamos cercados de seres enquanto Carlos estava a alguns metros olhando fixamente para mim. Ficar parado numa hora dessas, definitivamente não seria a melhor escolha.
Um bolo de coisas acontecendo na dimensão dos mortos enquanto na vida humana apenas um mísero minuto de vivencia. É incrível como as coisas são distintas para cada classe existente.
Então, Carlos olhou para mim com um olhar determinado e gritou:
-David! Solte Juliane!
Eu:
-Não posso! Não posso!
-Faça o que estou mandando e vamos salvar todos!
Juliane não queria soltar da minha mão, e dificilmente eu soltaria, amando aquela garota por tanto tempo, mas se eu fosse com ele, ela poderia me odiar para sempre, no entanto morta. Mas eu precisava de um motivo grande para me convencer a soltar da mão dela e em pouco tempo.
Lembrei do tanto egoísta ela foi de nunca ao menos ter o interesse em me conhecer, fazendo-me amar em vão e viver apenas na vontade. O meu ódio em milissegundos foi aumentando exponencialmente e então soltei da mão dela e ela:
-David! Você me prometeu!
E eu:
-Fique quieta. Estou usando o meu ódio por amor em você. Ajude a Gina e o Eduardo que eu vou tentar tirar vocês dessa.
Ela foi, ficou surpresa com as minhas palavras, e confesso que até eu. Mas me obedeceu e segui junto com a alma de Carlos.
15 - O meu lado violento
Fomos rumo à janela do quarto dele e eu disse:
-E como vamos expulsá-lo do seu corpo Carlos?
-David, eu sozinho não tenho forças para expulsar ele do meu corpo. Você tem que o enfraquecer!
-Mas como?
-Batendo! – E me apontou um martelo no quintal.
Eu nunca havia realizado um ato tão dantesco. Mas precisava. Por uma vez, por todos, por mim, por ela. Algumas almas persistiam em me perseguir e gritei a Carlos:
-Carlos! Eles vão me expulsar de meu corpo.
-Confie em mim. Não vão!
Fechei os olhos, fui rapidamente. Peguei o martelo. Dei meia volta, retornei, puxei com tudo a janela do quarto de Carlos. E de pronto já estava a alma que estava no corpo de Carlos. Estava a minha espera. Me segurou pelo pescoço. Enquanto tentava me enforcar, as almas atrás de mim estavam a insistir penetrar meu corpo e Carlos tentando retornar a seu corpo. Fechei a mão com toda a força que me restava e com o martelo acertei um golpe certeiro na cabeça do corpo de Carlos. Ele caiu no chão. Sem estar mais sendo enforcado, tive forças para adentrar o quarto dele. Montei sobre o corpo e com o martelo acertei vários e vários golpes no corpo de Carlos, usando um ódio que nunca tive na vida. E após uns dois minutos realizando aquilo, perdendo total a noção de quão eu estava sendo violento, a alma de Carlos disse:
-Obrigado David. Agora eu posso recuperar meu corpo. Fuja! Pois quando eu retornar voltaremos a dimensão dos vivos.
Eu levantei rapidamente, pulei pela janela dei minha ultima olhada para Carlos. Ele me deu um sorriso e agachou para tomar seu corpo de volta. E eu no quintal não achei mais nenhum dos meus amigos, e as almas seguiam em minha direção. Corri até o portão, saí da casa de Carlos, dei três passos correndo, pensei “Está demorando demais” e continuei até que cai. Abri os olhos, e estava na rua, sem nada mais em minha perseguição. Era um alívio e um desespero.
Onde estariam meus amigos?
16 - Um desfecho cinza
Levantei. Era hora de procurar alguém, era hora de saber como estava Carlos, era hora de saber o desfecho. Fui andando, liguei o celular, 3:49... Andando e em um quarteirão trombei com... Eduardo! Sim! Eduardo estava bem! Eu disse:
-Eduardo! Você! O que aconteceu?
-Nós sobrevivemos, fomos assediados por aqueles espíritos por um tempo que me pareceu infinito. Veja.
Me mostrou os braços cheios da poeira preta. E disse:
-Esta poeira é proveniente do toque daqueles espíritos, na intenção de adentrar o seu corpo.
-E onde estão as meninas?
-Elas correram. Não devem estar longe.
E começamos a as procurar. Três minutos no máximo e achamos elas. Gina estava com o rosto inteiramente coberto pela poeira, eu não me privei de dar um grande abraço nela. Virei-me para dar o mesmo em Juliane. Ela não aceitou. E eu disse:
-Você não entendeu o que eu fiz né?
E ela:
-Você não cumpriu o que prometeu dizendo que ficaria para me proteger.
Me cansei. Sonhar com aquela garota ainda depois de tudo aquilo era bobagem. Eu permaneci quieto por um tempo e disse:
-Bom, vamos cada um para suas casas. Acabou. Estamos livres.
E cada um seguiu seu rumo, eu ainda um pouco abalado por tudo, e pela reação de Juliane. Coloquei uma música para ouvir em meu celular. Veio-me justamente na cabeça aquela grande música dos Paralamas do Sucesso, romance ideal:
“Ela é só uma menina
E eu pagando pelos erros que eu nem sei se cometi
Ela é só uma menina
E eu deixando que ela faça o que bem quiser de mim
Se eu queria enlouquecer essa é a minha chance
É tudo que eu quis”
Cheguei em casa, minha mãe havia também acabado de chegar. Falou um monte para mim, eu vivi muita coisa aquela noite. Estava disposto a ouvir e reouvir o que ela me dissesse o quanto quisesse pois não estava prestando atenção em nada. Eu queria mesmo era dormir.
Pior é este destino, já era segunda. E não qualquer segunda. Eu tinha prova. E tinha pouco menos de três horas para saciar o meu sono de um final de semana inteiro.
17 - Surpresa
Ela falou um monte. E mães falam mesmo. Vocês conseguem entender. Pois bem, fui para o banheiro escovar os dentes para dormir, e a partir daquele dia SOMENTE dormir.
Abri o espelho para pegar minha escova e pasta de dente. E ao fechar de relance aparece Carlos novamente e disse de forma categórica:
-Você me ajudou. Mas eu não consegui me salvar. E eu fiquei preso aqui. E vocês se salvaram. E por culpa de vocês eu participei deste maldito jogo. Eu vou me vingar. Eu vou me vingar. EU VOU ME VINGAR!!!!!!! E de todos.
E o espelho trincou inteiro. O arrepio como sempre foi inevitável. Às vezes foi uma loucura minha. Ou talvez real. O que eu queria, era dormir.
Umas horas depois, quando já havia amanhecido, a cidade toda soube da noticia, Carlos morreu. O diagnóstico dizia Morte Por Insuficiência Cardíaca, mas eu melhor que ninguém sabia, aquele coração não estava mais batendo por Carlos. E sim por André Soares Couto. O nome por quem a alma que estava em seu corpo insistia que era. A mãe de Carlos custou a dizer isso para a imprensa que fez o seu clássico sensacionalismo envolvendo reportagens sobrenaturais. Mas juridicamente isso não quis dizer nada. Poderia ser apenas um acesso de loucura do pobre Carlos.
18 - A vingança
E ele se vingou mesmo. Cinco anos após sua morte, os pais de Eduardo sofreram um grave acidente de carro na estrada. Uma colisão frontal com um ônibus.
Juliane sete anos após a morte de Carlos entrou em depressão profunda. Questão de dias e seu corpo fora achado numa represa aqui na cidade.
Gina se casou e dez anos após a morte de Carlos teve um filho. A criança morreu no parto.
E eu...onze anos após a morte de Carlos estou aqui numa cama de hospital. O médico disse ainda hoje que tenho mais dois dias de vida no máximo. Já havia percebido isso no olhar dos amigos que vieram me visitar. Minha doença? Nenhum médico conseguiu diagnosticar com precisão. O que sei é que estou sentindo falta de ar e uma dor terrível.
É incrível como um mísero jogo pode trazer tanta desgraça para um grupo de amigos. Eu perdi minha família, perdi Juliane (que nunca tive), perdi uma vida e estou perdendo A vida. Não me culpo pela morte de Carlos, pois eu fiz de tudo. Mas as pessoas só pensam nos outros quando está bem. Caso contrário usam da vingança, por um motivo que não existiu.
Como será que estarei daqui a dois dias? Eu me vejo num lugar longe daquela dimensão. Eu quero paz. Não quero sobreviver em busca de tomar o corpo de alguém
19 - O meu último relatório
E antes de dar a minha partida como dada, eu gostaria de relatar o estudo que fiz durante os anos passados após a morte de Carlos.
Eu descobri que esta hora realmente é um ritual utilizado desde a idade média, onde bruxas invocavam espíritos mortos para realizarem magias. Posteriormente difundiu-se em algumas religiões que vou defronte aos princípios do cristianismo.
Descobri que as manchas pretas são as tentativas de penetração de corpos.
Descobri também sobre a vida de alguns seres que avistei na outra dimensão.
A senhora sem cabelos que apareceu se chamava Soraia. Morreu aos 72 anos. Um câncer foi a razão.
As roupas que tentaram me atacar eram na verdade espíritos de uma família de Bolivianos mortos em um acidente na fronteira, os pais de Juliane faziam doações de roupas para instituições de caridade.
O cachorro na casa de Carlos era seu primeiro cachorro.
Os seres encapuzados eram de muito tempo atrás, quando estavam a desbravar esta parte do nosso país.
O ser que andava por quatro pernas no meu quarto era um demente que morou na minha residência há quase 150 anos.
Entre outros, estes foram os que eu consegui me adentrar em vida.
E descobri o que mais me indagou. Por que no meio de tantas almas, nenhum dos meus amigos e até eu mesmo não perdi meu corpo para eles. A resposta é simples e até óbvia. As almas são como os humanos. Egoístas. E isso é tudo.
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